No último post, vimos que os racionalistas, herdeiros do cartesianismo, defendem que o conhecimento só pode ser confiável quando proveniente de reflexões pautadas em princípios a priori, ou seja, quando são conclusões a que chegamos a partir de deduções lógicas, matemáticas ou conceituais, sem vínculos com as percepções dos sentidos.
Contudo, também no século XVII, outro filósofo estudava de que modo apreenderíamos as coisas. Mas, para este, a experiência sensível seria o viés pelo qual a razão conheceria o mundo: trata-se de John Locke.
Legenda: Apenas a partir da análise visual desta imagem, você é capaz de afirmar se o círculo está dentro ou projetado para fora da superfície?Por Donnaphoto. Creative Commons. Atribuição CC BY-ND 2.0.
Naquele século, as correntes do racionalismo, representado por Descartes, e do empirismo, representado por Francis Bacon, tornaram a investigação acerca das circunstâncias do conhecimento um dos principais temas da filosofia.
Para Locke, as nossas ideias, ou o conhecimento que possuímos, teriam duas fontes distintas: a sensação e a reflexão. A sensação seria a afetação sofrida pela mente por meio dos sentidos. Em outras palavras, a sensação é a influência ou a modificação que ocorre na mente quando apreendemos a realidade pelos sentidos.
Já a reflexão seria a consciência do que se conhece, ou, nas palavras do filósofo, “a percepção das ações exercidas por nossa alma (razão) sobre as ideias que recebeu dos sentidos”¹. Consistiria, portanto, no pensar, raciocinar, inquirir sobre aquilo que a experiência externa apresentou à nossa percepção por meio dos sentidos.
Parece complicado, não é?
No século XVIII, os problemas gnosiológicos (relativos ao conhecimento) são abordados pelo filósofo empirista inglês David Hume, que consegue sistematizar o processo do conhecimento de uma forma mais simples que Locke.
Para Hume, quando somos afetados pelos sentidos, ou seja, quando sentimos uma sensação - seja ela de frio ou calor, de claro ou escuro, por exemplo -, ou mesmo quando visualizamos objetos, nós formaríamos impressões²: “são as impressões todas as nossas sensações, paixões e emoções, em sua primeira aparição na alma”. Essas impressões seriam a simples percepção das coisas, tal como se apresentam na experiência sensível.
Legenda: Ao visualizar essa imagem, a sensação é de que as torres ao centro não existem, mas são miragens, como em um deserto. Por C.P.Storm. Creative Commons. Atribuição CC BY 2.0.
Entretanto, seria a partir dessas impressões que nossa razão operaria: primeiro refletindo sobre elas, ou seja, analisando, julgando e avaliando-as, formando “ideias simples” a respeito das coisas. Por exemplo: a ideia de “cavalo”. Ao ver esse animal, teríamos uma impressão sensível dele, que é o resultado mental da nossa visão do bicho. Pensando a respeito da impressão que tivemos daquele animal, listando e avaliando suas características, formaríamos a ideia de cavalo, ou seja, a ideia de um animal provido de tais e tais características específicas que o distingue dos demais.
Além dessas ideias simples, nosso intelecto formaria ainda ideias complexas, que seriam obtidas a partir da seleção, agrupamento ou separação entre ideias simples. Por exemplo: a ideia de unicórnio. Para formarmos essa ideia, teríamos de juntar a ideia simples de cavalo à ideia simples de um animal com chifre.
Contudo, a forma como realizamos essas associações entre ideias distintas, ou seja, o modo como conectamos ideias simples e formamos ideias complexas obedeceria a três princípios:
- Princípio da contiguidade: associaríamos com base na proximidade das coisas no tempo e no espaço. Por exemplo: diversos carros alegóricos, música e fantasias nos remetem à ideia de carnaval.
- Princípio da semelhança: conectaríamos ideias simples usando como critério a aparente igualdade entre elas. Percebemos dois objetos semelhantes, contudo um deles nós conhecemos. Mas se ambos são semelhantes, logo o outro objeto é o mesmo que o primeiro. A comparação entre formas e aspectos é uma capacidade que desenvolvemos desde muito cedo: existem diversos jogos infantis, em que as crianças devem encaixar determinadas peças no seu devido formato. Quando elas realizam essa tarefa, pautam-se na aparente igualdade entre as formas.
- Princípio da causalidade: esse princípio sustenta um elo entre a causa e o efeito. Por exemplo, imaginemos uma mesa de bilhar. Ao movimentar o taco e chocá-lo contra uma das esferas para que estas caiam nos buracos da mesa, nós automaticamente deduzimos que o movimento do taco implicará o movimento das esferas, quando eles entrarem em contato. Entretanto, o que há na experiência do movimento do taco que me garante que esse movimento será transmitido às esferas? Com base em que concluímos isso? Hume sustenta que o hábito de ver o efeito do movimento das esferas a partir daquela causa - do choque do taco contra elas - faz com que acreditemos que o mesmo sempre ocorrerá.
Contudo, segundo o autor, tal conclusão não é necessária uma vez que não obrigatoriamente as coisas ocorrerão sempre da mesma forma só porque estamos habituados a vê-las acontecer assim.
A consequência das concepções humeanas são um pouco caras ao empirismo, uma vez que a noção de causa e efeito à qual ele atribui o simples hábito seria uma das pedras fundamentais da ciência. Ao sustentar que toda conclusão obtida a partir da observação de fenômenos não é necessária, pois estaria pautada apenas no hábito da ocorrência daquele fenômeno, Hume, tacitamente³ afirma que o principal método de investigação científico não é capaz de nos fornecer um conhecimento verdadeiro sob quaisquer circunstâncias, de caráter universal, portanto.
Isso denota que diferenciar realidade e verdade dos enganos da percepção não é tão simples quanto se pode julgar.
Em nosso próximo post verificaremos qual a posição da fenomenologia sobre esse assunto. Até lá!
REFERÊNCIAS:
ARANHA, Maria Lúcia. Filosofando. 2ed. rev. atual. São Paulo: Moderna, 1993.
BBC BRASIL. Americano cria arte em 3D nas ruas de todo o mundo.Disponível em: . Acesso em: 13 out. 2011.
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2000.
WENNER, Kurt. Street Painting. Disponível em: . Acesso em: 13 out. 2011.
¹ LOCKE, John. Apud: ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 837-838.
² HUME, David. Apud: ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 548.
³ Tacitamente: implicitamente.