O confronto entre torcidas de times de futebol rivais no Egito, ocorrido em 02 de fevereiro de 2012, resultou em mais um triste episódio da história da Primavera Árabe. Mas como uma mera partida de futebol tornou-se uma tragédia e ganhou conotação política? A resposta a essa questão está na atual conjuntura política do país.
Em 1953, foi proclamada a república no Egito. Contudo, Hosni Mubarak não ascendeu ao poder democraticamente, e sim pelo que Maquiavel chamaria de “virtù própria, mas também favorecido por outros”. Mubarak era militar de carreira e, após seu desempenho em conflitos como a Guerra do Yom Kippur contra Israel em 1973, foi promovido a marechal. Em 1975, foi nomeado vice-presidente do Egito pelo então presidente Anwar el-Sadat. Depois do assassinato desse governante, em 1981, tornou-se presidente.
Contudo, a posse de Mubarak ganhou uma conotação ditatorial, uma vez que suas ações tinham em vista perpetuar e ampliar o seu próprio poder - em 2005, conseguiu aprovar leis que promoveriam seu quinto mandato consecutivo. Apenas candidatos indicados pelo Parlamento podiam concorrer às eleições, e Mubarak foi acusado de coagir e manipular as indicações, de modo que elas o favorecessem
Atualmente, o governo do Egito é uma república sob a liderança militar do Conselho Supremo das Forças Armadas, que assumiu após a renúncia de Hosni Mubarak, ocorrida como consequência de protestos em massa em 2011. O Poder Legislativo é comandado tanto pelo governo quanto pela Assembleia do Povo (cujos representantes foram eleitos pelo voto popular).
Essa onda de levantes populares, denominada Primavera Árabe, entre os quais, encontra-se o Egito, poderia exemplificar algumas teses do filósofo do século XVI, Nicolau Maquiavel. Ele sustenta que existem dois humores ou apetites, dois desejos conflitantes nos Estados: os grandes, que querem dominar e perpetuar o seu poder, e o povo, que não quer ser dominado. Apenas na medida em que o poder político consegue articular os interesses conflitantes dessas duas instâncias da sociedade, regulamentando leis que ponham limite à ambição desmedida dos grandes e, ao mesmo tempo, ampliem o poder popular, tem-se, então, uma democracia.
Contudo, se uma classe se sobrepõe a outra, seja essa classe o povo, os militares, ou a classe rica, e consegue fazer prevalecer seus interesses sobre os demais, então se tem um governo despótico, marcado pela arbitrariedade política e opressão da oposição. Nesse governo, o poder é personificado pelo dirigente e pode se dar sob a forma de qualquer regime: monárquico ou republicano.
No caso do Egito, mesmo tendo sido deposto o governo de Mubarak, a junta militar continua a centralizar o poder político e articulá-lo em favor da permanência do antigo regime, ainda que contra a opinião popular, que deseja instaurar um governo de cunho democrático.
Legenda: Grafite com imagem do ex-presidente do Egito, Hosni Mubarak, na praça Tahir, na cidade do Cairo. Mubarak foi deposto após uma onda de manifestações que pediam o fim de seu governo, que já durava 30 anos. Por Denis Bocquet. CC BY 2.0.
O levante egípcio também pode ser analisado sob a ótica das teorias contratualistas de John Locke, filósofo do século XVII. Esse filósofo sustentava que, quando uma comunidade se encontra sem uma autoridade superior ou sem uma relação de submissão, desenvolve-se nela um estado de natureza, ou seja, um estado em que não se cumprem as leis que asseguram os direitos naturais do homem, os quais seriam, para Locke, a segurança de sua própria vida e o gozo daquilo que se adquire como fruto de seu trabalho.
Os egípicios não reconhecem a junta militar que governa o seu país atualmente como um poder legítimo (consentido) e clamam por eleições democráticas. Disso resulta o cenário de instabilidade política, confrontos e opressão popular.
Para Locke, o Estado deveria ser apenas um guardião que centralizaria as funções jurídicas e administrativas, responsável por organizar o convívio social. Os indivíduos de uma comunidade política deveriam consentir a uma administração a autoridade para centralizar a poder público. Uma vez que esse consentimento é dado, caberia ao governante retribuir os poderes a ele delegados, agindo de forma a garantir os direitos individuais e naturais do homem. O governante que quebra a confiança, agindo de má-fé ou não assegurando tais direitos, concede ao povo o direito e o dever de questionar o poder e rebelar-se.
Também podemos analisar a conjuntura política do Egito segundo as concepções do filósofo contemporâneo Claude Lefort. De acordo com esse autor, nos governos não democráticos, o governante se apossa do poder por toda a sua vida como se fosse seu proprietário.
Esse poder político pode ser exercido por uma determinada pessoa (um ditador ou tirano) ou por um grupo (oligarquia), e é personalizado, não legitimado, ou seja, não detém o consentimento da maioria, mas se sustenta por meio de um apelo populista que lhe traz prestígio, ou da força política ou militar dos que o possuem. Além disso, essa forma de poder tende a buscar a uniformização das crenças, das opiniões, dos costumes, evitando o pensamento divergente e destruindo a oposição.
Legenda: Grafite na praça Tahir, na cidade do Cairo, Egito. Esse local é palco de muitas manifestações contra o governo egípcio. Por Denis Bocquet. CC BY 2.0.
Disso resulta o totalitarismo, em que o poder se concentra em um partido único, representado por um homem todo-poderoso: o egocrata. São características dessa forma de poder ações drásticas ou de cunho populista buscando-se manter sempre em evidência, além do abuso do poder, evidenciado pela sobreposição do executivo aos poderes Legislativo e Judiciário, dando margem à arbitrariedade e à opressão.
Vemos a figura do Egocrata no Nazismo e Fascismo, com Benito Mussolini, General Franco, Adolf Hitler. No caso dos regimes totalitários no Oriente Médio, que sucumbiram frente à onda de manifestações da Primavera Árabe, podemos perceber algumas semelhanças com as teorias de Lefort, principalmente no que diz respeito ao uso da força política e militar, e supressão da oposição.